segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Minha Casa Não É Minha


Numa enorme mancha vermelha e cinza ao lado da rodovia que leva para a cidade, perto de um bairro bonito, ficava uma casinha de tijolo, madeira e papelão, espremida entre tantas outras iguais a ela, o lar de Tunico. Sim, Tunico. Pois era assim que o chamavam e assim que escrevia seu nome.
- T-O-N-I-C-O. Tonico – insistia a professora com ele assim que entrara na escola.
- Mas é Tunico, professora, com tu, não com to.
Um dia, Tunico parou para pensar e se deu conta de que não conhecia nenhum outro Tunico, nem mesmo Tonico, e perguntou ao seu pai que tipo de nome era aquele. A resposta que recebeu o encheu de satisfação e fazia questão de repeti-la toda vez que alguém lhe perguntava sobre isso.
- Qual o seu nome de verdade? – perguntou o menino magricelo da casinha ao lado.
- Antonio. Que nem o nome do meu pai.
- Mas se seu pai é Tonho, porque não te chamam de Tonhinho.
- Não sei. Mas eu gosto de Tunico. Tenho o nome igual o do meu pai, e ao mesmo tempo diferente. Tendeu, Cleberson?
- Acho que não.
Cleberson nunca foi muito esperto, mas foi o primeiro, e talvez único, amigo de Tunico. Ele tem esse nome porque seus pais sempre sonharam em ter um filho jogador de futebol. “Nome de jogador ele já tem, só falta saber jogar”, os meninos diziam as suas costas.
- Edson Arantes do Nascimento. É esse o nome que eu colocaria no meu filho se eu quisesse que ele fosse jogador do futebol. Um bom jogador – Foi o que o seu pai disse quando conheceu Cleberson.
- Pai, que nome é esse?
- Você conhece o Pelé, não conhece? Então, esse é o nome dele. O nome de verdade. Ou você pensou que o nome dele era Pelé? Ninguém se chama Pelé. Isso não é nome. Só serve pra apelido.
- Como sabe que esse é mesmo o nome dele?
- Li uma vez num jornal.
O pai de Tunico, adorava ler. Desde que aprendeu, aos 15 anos, não parou mais. Uma pena é que a única coisa que encontrava para ler na maioria das vezes eram jornais velhos. Se alguém quisesse noticia nova tinha que ir até a banca, que não ficava muito perto, e ler o que estava escrito nos jornais pendurados no barbante.
Quando era pequeno, Tunico ia todo domingo a banca com seu pai, que sempre dizia ser o jornal de domingo melhor do que os outros, pois é mais gordo, tem mais coisa pra ler. Enquanto o pai lia os jornais, o filho folheava alguma revista em quadrinhos, sempre concentrado nos desenhos, prestando o máximo de atenção para entender a história. Um dia, Tunico nunca soube exatamente o porquê, seu pai ficou muito bravo de repente. Pensou que tivesse feito algo errado, mas não sabia o quê, como ou quando. Tudo o que tinha feito foi folhear uma revistinha. O pai o pegou pelo braço e o arrastou de volta até em casa só para dizer a sua mãe que a partir daquele dia o filho deles não iria mais vender bala na rua.
- Tunico agora vai pra escola.
- E quem vai vender bala? – a mãe pegou a caixa com bala de goma e estendeu para ele, mas seu pai não pegou.
- Eu já tenho emprego. Você pode ficar com a vaga de vendedora de bala.
- Então é assim? Tudo bem. Aposto que consigo ganhar mais dinheiro vendendo bala do que você naquele seu empreguinho de merda.
Sua mãe, dona Bebel, não gostou nem um pouco disso. Ela era boa pessoa, apesar de também ser orgulhosa e gananciosa. Queria o melhor para o filho, com certeza, mas, antes, queria o melhor para si mesma.
- O que você já aprendeu na escola? – ela perguntou a Tunico quando ele chegou em casa depois do primeiro dia de aula.
- Nada.
- Tá vendo só, Tonho? Nada!
- Ele ainda não aprendeu nada.
Alguns meses depois Tunico já estava lendo e escrevendo, mas nem assim sua mãe sossegou. Um dia ela disse a Tonho que ler ele também lia e que isso não fazia a menor diferença no seu trabalho, então o menino não precisava passar tanto tempo na escola aprendendo uma coisa que lhe daria no máximo um empreguinho de merda igual ao do pai.
Dona Bebel não conseguia entender que se seu filho estudasse teria um bom emprego, com um bom salário, e lhe daria uma boa vida. Ela queria boa vida naquele exato momento, e como não tinha, vivia frustrada. Tonho e seu empreguinho de merda com um salário igualmente fedorento a frustravam. A casa feia de dois cômodos a frustrava. Não poder comprar chinelos novos a frustrava. Nascer pobre e ter a perspectiva de morrer ainda pobre também a frustrava. Ela própria se frustrava – pelo menos foi o que Tunico pensou quando se ofereceu para ensiná-la a ler. Ele pensou que na verdade toda aquela raiva fosse algum tipo de inveja por ela ser agora a única ali sem saber ler nem escrever. Ela nem se deu ao trabalho de recusar a oferta, apenas bateu nele.
Falando assim talvez dona Bebel pareça uma pessoa horrível, mas não. Não sempre. Não para Tunico. Ele a amava. Era a mãe dele.
Um dia, quando Tunico mal havia aprendido a chutar bola, no meio de uma discussão, uma vizinha chamou sua mãe de preta safada. Ele correu em direção a mulher e a chutou na canela com toda a força. Ela foi parar no chão, não se sabe se por susto ou dor, e dona Bebel se orgulhou de Tunico. Se orgulhou tanto que naquele dia o deixou comer todas as balas de goma da caixa.
- Preta safada – alguns meninos gritavam ao passar em frente a casinha, só para que Tunico saísse e brigasse com eles. Nas primeiras vezes ele até foi, mas depois de sua mãe dizer que não se importava com a opinião deles, pois o que vinha de baixo não a atingia, passou a ignorá-los... Até o dia em que o preto safado virou ele.
Entrou na maior briga de sua vida naquele dia. Não havia nenhum adulto por perto e os meninos mais velhos queriam ver sangue. Quando Cleberson ameaçou se levantar para ajudar o amigo, recebeu um soco no estomago. Tunico rolou na terra com um tal de Joca por um bom tempo até que o barulho de um acidente de carro chamou a atenção do meninos e todos correram em direção a rodovia para ver se alguém morreu. Todos, menos Tunico e Rafaela.
Acho que Rafaela era a única menina assistindo a briga. Não dá pra saber direito – quando todos tem mais ou menos o mesmo tamanho, se vestem mais ou menos igual e estão mais ou menos sujos pela mesma quantidade de sujeira fica complicado dizer quem é menino e quem é menina. Mas Rafaela estava lá, e era, claramente, uma menina. Uma menina linda, de pele negra brilhando ao sol e com trancinhas pulando atrás de sua cabeça enquanto corria em direção a Tunico.
- Por que você tava brigando?
- Porque me chamaram de preto safado.
- Não precisava ter brigado por causa disso, era só ignorar eles. Minha mãe sempre me diz pra ignorar quando mexem comigo, porque deve ser só alguém com inveja de mim, querendo ser eu.
“Quem ia querer ser pobre e desgraçado?” Tunico só pensou, não falou. Não queria correr o risco de Rafaela entender errado o que diria e ficar de mal dele. “Somos só dois coitados, mais nada!” Dessa vez, pensou tão alto que quase falou.
- E quem é que quer ser um preto safado?
- Não é isso! Ah! E mesmo que fosse. Por acaso você é safado?
- Não. Não sou. E se você quer saber a verdade, também não sou preto. Sou marrom.
- Que nem café com leite?
- Igualzinho café com leite. Com pai branco e mãe preta não posso ser uma coisa nem outra, só marrom.
Rafaela se tornou sua amiga naquele mesmo dia. Eles jogavam bola, pulavam corda, faziam bonecos de papelão, tudo sempre juntos, e quando chovia jogavam lama um no outro. No ano seguinte, quando Rafaela também começou a freqüentar a escola, eles iam e voltavam juntos, e Tunico ainda a ajudava com o dever de casa.
Quando Rafaela fez dez anos, Tunico queria dar a ela um par de chinelos que comprou economizando algumas moedinhas por alguns meses, desde que a menina conseguiu arrancar a cabeça do dedão do pé jogando bola descalça. Ele até arrumou um papel colorido para fazer um embrulho de presente. Não ficou um pacote muito bonito, mas Tunico, se lembrando de que seu pai sempre diz de que o que vale é a intenção, não ficou menos satisfeito com seu trabalho por causa disso.
Ele foi a casa dela, cumprimentou seus pais, dona Carla Rita e Da Silva, deixou o presente em cima de seu colchão, e para que ninguém o pegasse por engano, ainda escreveu um bilhetinho com letras bem grandes: PARA RAFAELA.
O dia havia se passado quase por completo e ele ainda não tinha visto nem a sombra de Rafaela, quando uma mulher gorda apareceu gritando.
- FOGO! FOGO!
Todos que estavam no campinho improvisado jogando bola correram na direção em que a mulher apontava. Dessa vez Tunico também correu. Correu até que não correu mais. Parou. Ao olhar para o céu viu fumaça subindo, e para os lados, pessoas correndo em todas as direções. Umas fugiam, outras tentavam alcançar seus lares antes do fogo e salvar alguma coisa. Também havia quem não corresse, que só ficasse parado olhando com os olhos molhados e a boca aberta. Tunico era um desses.
Ficou lá parado olhando até que alguém o tirou de lá. Foi seu pai, mais tarde ele se deu conta. Havia engolido muita fumaça, como ele mesmo disse, e estava atordoado quando Da Silva apareceu, se espremendo com pressa entre as pessoas.
- Tunico, viu Rafaela?
Uma única pergunta disparou milhares de pensamentos pela sua cabeça. Seu primeiro impulso foi sair para procurá-la, mas se deteve alguns passos depois ao se deparar com a mãe de Cleberson, dona Cida, ajoelhada no chão e chorando desesperadamente sobre uma camisa que apertava entre as mãos. Tunico a abraçou e chorou junto com ela.
Na manhã seguinte, todo o lugar estava cercado por caminhões dos bombeiros e carros da policia. Homens fardados perambulavam perguntando se tinha algum ferido ou se alguém sabia de algo. Quase metade das frágeis casinhas havia queimado. Muitas pessoas perderam todo o nada que tinham.
Tunico caminhava entre as cinzas quando recebeu a noticia de que Rafaela estava bem. Nada sofrera e de nada sabia. Ela tinha passado a noite na casa de uma tia, do outro lado da cidade, e por lá ficaria. A família dela foi uma das que perderam a casa e precisavam encontrar outro lugar pra morar.
- Da Silva, por favor, deixa eu me despedir dela.
- Não tem como, Tunico. Ela tá lá longe.
- Então me diz onde vocês vão morar agora, que eu vou lá visitar.
- Minha casa era essa aqui. Agora vou levar Carla Rita e os menino pra casa da minha irmã, onde tá Rafaela. Mas depois não sei pra onde...
- Vocês não precisam ir. Eu faço outra casa pra vocês. Da Silva, por favor! Me deixa pelo menos dar o presente que eu comprei pra ela. Deixei no colchão dela...
- Menino, não tem mais casa, não tem mais presente. O fogo queimou tudo.
A casa de Tunico ainda estava em pé, mas ele descobriu dois dias depois que a deixariam mesmo assim. Seu pai lhe disse que um pessoal tinha uns planos para aquele lugar e que aquelas casinhas amontoadas umas nas outras não ficariam ali por muito mais tempo, eles partindo ou não.
- Que pessoal? Que planos? Se queimarem minha casa eu faço outra. Não vão me tirar daqui! Quem quer fazer isso? Me diz! Quem ia querer tirar toda essa gente de casa e deixar sem onde morar? Porque fariam isso?
- É a vida – seu pai se limitou a dizer.
- Isso não é a vida, é a morte!
- Eu sinto muito pelo Cleberson, meu filho.
- Quem quer me tirar a minha casa? Quem? É o pessoal daquele bairro chique?
- Não eles, mas pessoas como eles.
- Eles não pensa na gente?
- Não, meu filho, eles não pensa.
Alguns dias depois, Tunico estava em um ônibus com sua família, indo, não se sabe ao certo para onde, pedir abrigo por um tempo à uma tia-avó de seu pai. Tunico lançou um ultimo olhar para o lugar que havia sido seu lar por toda a sua vida até ali, mas que, depois de tudo demolido, abrigaria um shopping. “Como se o mundo precisasse de mais um...”
Tunico então se pegou pensando na vida, na sua vida - ou, na morte de sua vida, como um dia ele mesmo disse – e se deu conta de que tudo o que pensava ser seu nunca realmente o pertenceu. Nem mesmo seu nome era seu, era de seu pai. Ele não era Antonio, nunca foi e nem nunca seria. Era só Tunico, mais ninguém. Mas todo o resto, aquilo que de fato nunca teve, faria falta. O que era um nome perto de todo o resto? Tunico deixaria de ser Tunico se isso lhe trouxesse de volta o que perdeu... Perdeu o lar, o amigo e o primeiro amor, para que as pessoas que já tinham tudo tivessem ainda mais.

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