Numa enorme
mancha vermelha e cinza ao lado da rodovia que leva para a cidade, perto de um bairro
bonito, ficava uma casinha de tijolo, madeira e papelão, espremida entre tantas
outras iguais a ela, o lar de Tunico. Sim, Tunico. Pois era assim que o chamavam
e assim que escrevia seu nome.
- T-O-N-I-C-O. Tonico – insistia
a professora com ele assim que entrara na escola.
- Mas é Tunico, professora, com
tu, não com to.
Um dia, Tunico
parou para pensar e se deu conta de que não conhecia nenhum outro Tunico, nem
mesmo Tonico, e perguntou ao seu pai que tipo de nome era aquele. A resposta
que recebeu o encheu de satisfação e fazia questão de repeti-la toda vez que
alguém lhe perguntava sobre isso.
- Qual o seu nome de verdade? – perguntou
o menino magricelo da casinha ao lado.
- Antonio. Que nem o nome do meu
pai.
- Mas se seu pai é Tonho, porque
não te chamam de Tonhinho.
- Não sei. Mas eu gosto de
Tunico. Tenho o nome igual o do meu pai, e ao mesmo tempo diferente. Tendeu,
Cleberson?
- Acho que não.
Cleberson nunca
foi muito esperto, mas foi o primeiro, e talvez único, amigo de Tunico. Ele tem
esse nome porque seus pais sempre sonharam em ter um filho jogador de futebol.
“Nome de jogador ele já tem, só falta saber jogar”, os meninos diziam as suas
costas.
- Edson Arantes do Nascimento. É
esse o nome que eu colocaria no meu filho se eu quisesse que ele fosse jogador
do futebol. Um bom jogador – Foi o que o seu pai disse quando conheceu
Cleberson.
- Pai, que nome é esse?
- Você conhece o Pelé, não
conhece? Então, esse é o nome dele. O nome de verdade. Ou você pensou que o
nome dele era Pelé? Ninguém se chama Pelé. Isso não é nome. Só serve pra
apelido.
- Como sabe que esse é mesmo o
nome dele?
- Li uma vez num jornal.
O pai de
Tunico, adorava ler. Desde que aprendeu, aos 15 anos, não parou mais. Uma pena
é que a única coisa que encontrava para ler na maioria das vezes eram jornais
velhos. Se alguém quisesse noticia nova tinha que ir até a banca, que não
ficava muito perto, e ler o que estava escrito nos jornais pendurados no
barbante.
Quando era
pequeno, Tunico ia todo domingo a banca com seu pai, que sempre dizia ser o
jornal de domingo melhor do que os outros, pois é mais gordo, tem mais coisa
pra ler. Enquanto o pai lia os jornais, o filho folheava alguma revista em
quadrinhos, sempre concentrado nos desenhos, prestando o máximo de atenção para
entender a história. Um dia, Tunico nunca soube exatamente o porquê, seu pai ficou
muito bravo de repente. Pensou que tivesse feito algo errado, mas não sabia o
quê, como ou quando. Tudo o que tinha feito foi folhear uma revistinha. O pai o
pegou pelo braço e o arrastou de volta até em casa só para dizer a sua mãe que
a partir daquele dia o filho deles não iria mais vender bala na rua.
- Tunico agora vai pra escola.
- E quem vai vender bala? – a mãe
pegou a caixa com bala de goma e estendeu para ele, mas seu pai não pegou.
- Eu já tenho emprego. Você pode
ficar com a vaga de vendedora de bala.
- Então é assim? Tudo bem. Aposto
que consigo ganhar mais dinheiro vendendo bala do que você naquele seu
empreguinho de merda.
Sua mãe, dona
Bebel, não gostou nem um pouco disso. Ela era boa pessoa, apesar de também ser
orgulhosa e gananciosa. Queria o melhor para o filho, com certeza, mas, antes,
queria o melhor para si mesma.
- O que você já aprendeu na
escola? – ela perguntou a Tunico quando ele chegou em casa depois do primeiro
dia de aula.
- Nada.
- Tá vendo só, Tonho? Nada!
- Ele ainda não aprendeu nada.
Alguns meses
depois Tunico já estava lendo e escrevendo, mas nem assim sua mãe sossegou. Um
dia ela disse a Tonho que ler ele também lia e que isso não fazia a menor diferença
no seu trabalho, então o menino não precisava passar tanto tempo na escola
aprendendo uma coisa que lhe daria no máximo um empreguinho de merda igual ao
do pai.
Dona Bebel não
conseguia entender que se seu filho estudasse teria um bom emprego, com um bom
salário, e lhe daria uma boa vida. Ela queria boa vida naquele exato momento, e
como não tinha, vivia frustrada. Tonho e seu empreguinho de merda com um salário
igualmente fedorento a frustravam. A casa feia de dois cômodos a frustrava. Não
poder comprar chinelos novos a frustrava. Nascer pobre e ter a perspectiva de
morrer ainda pobre também a frustrava. Ela própria se frustrava – pelo menos
foi o que Tunico pensou quando se ofereceu para ensiná-la a ler. Ele pensou que
na verdade toda aquela raiva fosse algum tipo de inveja por ela ser agora a
única ali sem saber ler nem escrever. Ela nem se deu ao trabalho de recusar a
oferta, apenas bateu nele.
Falando assim
talvez dona Bebel pareça uma pessoa horrível, mas não. Não sempre. Não para
Tunico. Ele a amava. Era a mãe dele.
Um dia, quando
Tunico mal havia aprendido a chutar bola, no meio de uma discussão, uma vizinha
chamou sua mãe de preta safada. Ele correu em direção a mulher e a chutou na
canela com toda a força. Ela foi parar no chão, não se sabe se por susto ou
dor, e dona Bebel se orgulhou de Tunico. Se orgulhou tanto que naquele dia o
deixou comer todas as balas de goma da caixa.
- Preta safada – alguns meninos
gritavam ao passar em frente a casinha, só para que Tunico saísse e brigasse
com eles. Nas primeiras vezes ele até foi, mas depois de sua mãe dizer que não
se importava com a opinião deles,
pois o que vinha de baixo não a atingia, passou a ignorá-los... Até o dia em
que o preto safado virou ele.
Entrou na
maior briga de sua vida naquele dia. Não havia nenhum adulto por perto e os
meninos mais velhos queriam ver sangue. Quando Cleberson ameaçou se levantar
para ajudar o amigo, recebeu um soco no estomago. Tunico rolou na terra com um
tal de Joca por um bom tempo até que o barulho de um acidente de carro chamou a
atenção do meninos e todos correram em direção a rodovia para ver se alguém
morreu. Todos, menos Tunico e Rafaela.
Acho que
Rafaela era a única menina assistindo a briga. Não dá pra saber direito –
quando todos tem mais ou menos o mesmo tamanho, se vestem mais ou menos igual e
estão mais ou menos sujos pela mesma quantidade de sujeira fica complicado
dizer quem é menino e quem é menina. Mas Rafaela estava lá, e era, claramente,
uma menina. Uma menina linda, de pele negra brilhando ao sol e com trancinhas
pulando atrás de sua cabeça enquanto corria em direção a Tunico.
- Por que você tava brigando?
- Porque me chamaram de preto
safado.
- Não precisava ter brigado por
causa disso, era só ignorar eles. Minha mãe sempre me diz pra ignorar quando
mexem comigo, porque deve ser só alguém com inveja de mim, querendo ser eu.
“Quem ia
querer ser pobre e desgraçado?” Tunico só pensou, não falou. Não queria correr
o risco de Rafaela entender errado o que diria e ficar de mal dele. “Somos só
dois coitados, mais nada!” Dessa vez, pensou tão alto que quase falou.
- E quem é que quer ser um preto
safado?
- Não é isso! Ah! E mesmo que
fosse. Por acaso você é safado?
- Não. Não sou. E se você quer
saber a verdade, também não sou preto. Sou marrom.
- Que nem café com leite?
- Igualzinho café com leite. Com
pai branco e mãe preta não posso ser uma coisa nem outra, só marrom.
Rafaela se
tornou sua amiga naquele mesmo dia. Eles jogavam bola, pulavam corda, faziam
bonecos de papelão, tudo sempre juntos, e quando chovia jogavam lama um no
outro. No ano seguinte, quando Rafaela também começou a freqüentar a escola,
eles iam e voltavam juntos, e Tunico ainda a ajudava com o dever de casa.
Quando Rafaela
fez dez anos, Tunico queria dar a ela um par de chinelos que comprou
economizando algumas moedinhas por alguns meses, desde que a menina conseguiu
arrancar a cabeça do dedão do pé jogando bola descalça. Ele até arrumou um papel
colorido para fazer um embrulho de presente. Não ficou um pacote muito bonito,
mas Tunico, se lembrando de que seu pai sempre diz de que o que vale é a
intenção, não ficou menos satisfeito com seu trabalho por causa disso.
Ele foi a casa
dela, cumprimentou seus pais, dona Carla Rita e Da Silva, deixou o presente em
cima de seu colchão, e para que ninguém o pegasse por engano, ainda escreveu um
bilhetinho com letras bem grandes: PARA RAFAELA.
O dia havia se
passado quase por completo e ele ainda não tinha visto nem a sombra de Rafaela,
quando uma mulher gorda apareceu gritando.
- FOGO! FOGO!
Todos que
estavam no campinho improvisado jogando bola correram na direção em que a
mulher apontava. Dessa vez Tunico também correu. Correu até que não correu mais.
Parou. Ao olhar para o céu viu fumaça subindo, e para os lados, pessoas
correndo em todas as direções. Umas fugiam, outras tentavam alcançar seus lares
antes do fogo e salvar alguma coisa. Também havia quem não corresse, que só
ficasse parado olhando com os olhos molhados e a boca aberta. Tunico era um
desses.
Ficou lá
parado olhando até que alguém o tirou de lá. Foi seu pai, mais tarde ele se deu
conta. Havia engolido muita fumaça, como ele mesmo disse, e estava atordoado
quando Da Silva apareceu, se espremendo com pressa entre as pessoas.
- Tunico, viu Rafaela?
Uma única
pergunta disparou milhares de pensamentos pela sua cabeça. Seu primeiro impulso
foi sair para procurá-la, mas se deteve alguns passos depois ao se deparar com
a mãe de Cleberson, dona Cida, ajoelhada no chão e chorando desesperadamente
sobre uma camisa que apertava entre as mãos. Tunico a abraçou e chorou junto
com ela.
Na manhã
seguinte, todo o lugar estava cercado por caminhões dos bombeiros e carros da
policia. Homens fardados perambulavam perguntando se tinha algum ferido ou se
alguém sabia de algo. Quase metade das frágeis casinhas havia queimado. Muitas
pessoas perderam todo o nada que tinham.
Tunico
caminhava entre as cinzas quando recebeu a noticia de que Rafaela estava bem.
Nada sofrera e de nada sabia. Ela tinha passado a noite na casa de uma tia, do
outro lado da cidade, e por lá ficaria. A família dela foi uma das que perderam
a casa e precisavam encontrar outro lugar pra morar.
- Da Silva, por favor, deixa eu
me despedir dela.
- Não tem como, Tunico. Ela tá lá
longe.
- Então me diz onde vocês vão
morar agora, que eu vou lá visitar.
- Minha casa era essa aqui. Agora
vou levar Carla Rita e os menino pra casa da minha irmã, onde tá Rafaela. Mas
depois não sei pra onde...
- Vocês não precisam ir. Eu faço
outra casa pra vocês. Da Silva, por favor! Me deixa pelo menos dar o presente
que eu comprei pra ela. Deixei no colchão dela...
- Menino, não tem mais casa, não
tem mais presente. O fogo queimou tudo.
A casa de
Tunico ainda estava em pé, mas ele descobriu dois dias depois que a deixariam
mesmo assim. Seu pai lhe disse que um pessoal tinha uns planos para aquele
lugar e que aquelas casinhas amontoadas umas nas outras não ficariam ali por
muito mais tempo, eles partindo ou não.
- Que pessoal? Que planos? Se
queimarem minha casa eu faço outra. Não vão me tirar daqui! Quem quer fazer
isso? Me diz! Quem ia querer tirar toda essa gente de casa e deixar sem onde
morar? Porque fariam isso?
- É a vida – seu pai se limitou a
dizer.
- Isso não é a vida, é a morte!
- Eu sinto muito pelo Cleberson,
meu filho.
- Quem quer me tirar a minha
casa? Quem? É o pessoal daquele bairro chique?
- Não eles, mas pessoas como
eles.
- Eles não pensa na gente?
- Não, meu filho, eles não pensa.
Alguns dias
depois, Tunico estava em um ônibus com sua família, indo, não se sabe ao certo
para onde, pedir abrigo por um tempo à uma tia-avó de seu pai. Tunico lançou um
ultimo olhar para o lugar que havia sido seu lar por toda a sua vida até ali,
mas que, depois de tudo demolido, abrigaria um shopping. “Como se o mundo
precisasse de mais um...”
Tunico então
se pegou pensando na vida, na sua vida - ou, na morte de sua vida, como um dia
ele mesmo disse – e se deu conta de que tudo o que pensava ser seu nunca
realmente o pertenceu. Nem mesmo seu nome era seu, era de seu pai. Ele não era
Antonio, nunca foi e nem nunca seria. Era só Tunico, mais ninguém. Mas todo o
resto, aquilo que de fato nunca teve, faria falta. O que era um nome perto de
todo o resto? Tunico deixaria de ser Tunico se isso lhe trouxesse de volta o
que perdeu... Perdeu o lar, o amigo e o primeiro amor, para que as pessoas que
já tinham tudo tivessem ainda mais.